terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Pra quem acha que etimologia justifica tudo

Rolou o seguinte diálogo faz uns dias, com um conhecido: 

-- "Idelber, não sou a favor de discriminar os gays, mas" [como vocês sabem, quando começa assim, dá merda] "'matrimônio gay' é um contrassenso, porque 'matrimônio' vem de 'mater', que significa 'mãe'. Dois homens gays não podem contrair um MATRImônio", pontificou meu interlocutor. 

Minha resposta: 

-- OK, tudo bem. Mas, para ser coerente, faça-me o favor de, no próximo dia primeiro, passar pelo banco e receber, não dinheiro, mas SAL, porque é daí que vem a palavra "salário". Diga a seu irmão que feche a loja no próximo sábado porque "xabbát" significa "dia de repouso". Como sei que gosta de fazer ginástica, na próxima deixe a roupa em casa, porque "gymnos" significa "pelado". Enquanto isso, não se esqueça também de escravizar os seus filhos, porque "família" vem "famulus", ou seja, "servo".

Ticontá uma coisa, viu. A homofobia chega ao ponto de os caras quererem transformar a etimologia em ciência legislativo-normativa. Só rindo mesmo.


(Texto de Idelber Avelar Guarani Kaiowá, via Facebook)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Palavra perdida

Recentemente perdi uma palavra. Em dezembro, corrigindo provas de um concurso com dois amigos. O candidato vinha mal das pernas no texto e numa certa linha usou o verbo “recrudescer”. Algo como: “Apesar da fiscalização, o número de acidentes recrudesceu.” Eu, já muito injuriada, arrematei meus comentários: - E ainda por cima não sabe usar “recrudescer”! Um dos amigos sai em defesa do candidato: - Ué, ele usou certo! Recrudesceu, aumentou. – Ah, não! Claro que não! (a revoltada). 
“Recrudescer” sempre me foi uma palavra cara, não tem semestre em que eu não use nas minhas aulas! Não tem comentário sobre variação e mudança que não leve um “recrudescer” de brinde...  E um “recrudescer” que pra mim era o legítimo: se um percentual de uma dada regra diminuía, obviamente recrudescia! O emprego do L posvocálico recrudesceu. O uso do R dos infinitivos verbais vem recrudescendo desde o início do século XX. Abriram-se dicionários e fiz questão de pegar o Houaiss impresso, pesado, com muitas páginas. E tava lá. O tal re-, que eu tomava por um prefixo indicativo de retrocesso, recuo, estava lá mesmo com função intensificadora:  o vocábulo latino crudescere (“sangrar, ficar irritado, cruel”), quando ganha o prefixo re-, fica pior ainda.
Ok, eu aprendi. Mas não me recuperei. E não sei como vai ficar a nossa relação. Hoje, acho que não tem volta. Me sinto traída. Sou canceriana e carrego mágoas de uma vida pra outra... rs. Pensei em não dar aulas neste semestre, pensei em não falar mais de variação e mudança (ou talvez só falar dos percentuais que sobem). Mas a vida segue e temos que ser pragmáticos. Que venham os sinônimos do meu recrudescer particular: amainar, abrandar, diminuir. Mas nada me satisfaz, nada soa como o vocábulo que se foi. E que fiquem todos os meus alunos com esta errata das minhas aulas. Se aprenderam a palavra comigo, desaprendam. E no pragmatismo possível recontarei ainda muito a história, pois quanto mais a gente divide, maior a possibilidade de a dor se aplacar.

Perdi uma palavra. E vocês, já perderam alguma?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014